quarta-feira, 18 de junho de 2014

O verde dos seus olhos


Pai,

Quando você abriu os olhos bem devagar depois de alguns dias de sedação, percebi pela primeira vez que o anel exterior dos seus olhos são verdes. Cor de oliva, como disse a minha mãe. Desde que voltei de Madri, tinha um receio ainda incosciente de não ver mais seus olhos abertos. Só que você dedicou parte de sua vida a dissipar meus medos e me mostrar cores novas. E agora, nem mesmo agora, faria diferente. Naquele dia portanto você não só me olhou de novo, piscou e trocou olhares, como ainda me mostrou algo novo: o verde cor de oliva dos seus olhos.

Mas para ver bem as coisas, feche os olhos.

Foi o conselho que você me deu antes de uma viagem e que, como todos os outros, ouço diariamente através de sua voz baixinha que ecoa, e sempre ecoará, na minha mente.

Fecho os olhos então e enxergo claramente a imagem-símbolo de uma vida que foi vitória: te vejo alto, cabelos pretos ao vento, sorriso largo e peito aberto, avançando imponente sobre as primeiras ondas do mar - onde você foi mais pleno neste mundo. Numa mão, a Bel; na outra, eu, que deitada na pranchinha olhava para cima, você, e para frente, o mar, e ali me sentia invencível, naquele momento cuja barreira do tempo e espaço tento quebrar cada vez que fecho os olhos. De mãos dadas com você, não havia, não há, onda que não me arrisque em avançar. E então avançávamos até a arrebentação, de onde você nos empurrava forte diante da onda que se formava. E lá íamos nós onda abaixo até a prancha aterrar na beiradinha, uma sensação que só não era melhor que a de ver a sua reação. Por isso, eu levantava afobada, com areia no cabelo, no nariz e no maiô só para me virar e te buscar, e lá estava você, no fundo do mar, gargalhando de alegria e com as mãos para cima em sinal de vitória. Depois disso nunca mais uma montanha russa, uma ladeira de patins, uma grande viagem ou qualquer outra grande aventura tinha graça sem essa sua gargalhada com as mãos para cima em sinal de vitória por trás, essa sua torcida apaixonada.

Fecho os olhos de novo para abri-lo lentamente ao ouvir você chamar a mim e a Bel, deitadas no banco do carro durante uma viagem para Vitória, para ver o sol, uma bola vermelha e gigante no horizonte, e depois disso para sempre olhar o sol no horizonte é para mim uma das maiores aventuras desta vida. Um efeito indelével de sua incansável missão em ensinar a nós, e a todos em volta a amar a natureza, o simples, a essência. Amar acordar cedo para ver o sol, ir à feira comprar frutas e depois distribuí-las aos amigos, e ver prazer em tomar um bom banho e calçar um sapato confortável, dois hábitos que, como você dizia, as pessoas jamais precisariam usar qualquer tipo de drogas se percebessem a potência de bem-estar que eles carregam. E penso nisso de olhos fechados a cada vez que termino um banho.

E ao fechar os olhos outra vez posso sentir o vento forte da garupa da sua moto, enquanto você me levava para a escola antes das 7h e ainda me deixava abrir os braços enquanto acelerava na pista vazia.

Fecho os olhos. Abro e, através de uma máscara de mergulho, vejo você sentado no fundo do mar analisando o que há em volta para logo explorar corais e tocas de peixe, para de lá me mostrar uma estrela do mar, e eu sorrir e te pedir para continuar. Porque ali eu podia passar, e passava, horas (só interrompidas pelas subidas ao deque da lancha para aliviar a saturação de sal esfregando nos lábios cubinhos de doce de leite, que você comprava na estrada): horas te observando, no embalo da minha respiração no tubo, passenado pelo fundo do mar, movendo os pés de pato com tranquilidade e fôlego.

Tranquilidade e fôlego.

Acredito que foi assim que você encarou um diagnóstico recebido há oito anos. Desde então, gostaria de frisar, pai, você não teve uma sobrevida.

Você teve uma vida.

Fez três viagens para a Europa, onde fizemos subviagens inesquecíveis, e uma aos Estados Unidos para visitar a família cujo elo, perdido pela dureza de migrações no pós-guerra no leste europeu, você foi o primeiro a refazer em uma visita a Miami aos 17 anos. Ganhou um campeonato de tênis, dançou, fez obras, pescarias e almoços, incontáveis almoços, nos quais você servia o mar, sua grande paixão, e servia o amor, sua grande missão.

Isso foi vida. Sobrevida é aquilo que temos quando não fazemos o que amamos, quando vivemos sem vontade e arrastando os dias.

Meu pai sempre viveu. Seus hobbies e suas paixões faziam parte do seu cotidiano. Andar de moto, jogar tênis, mergulhar, pescar, comprar peixe e ver o mar. E principalmente, amar e conviver com seus amigos e família, prezar e fazer questão da companhia de cada um deles.

À minha mãe, sua eterna namorada, você foi fiel na sua promessa de que seria para sempre. Você amou, foi companheiro, incentivador, protetor, amante, amigo, exercitou diariamente um amor que, esse sim mãe, mais que para sempre, será eterno, esse sim fará com que você continue de mãos dadas com ele aqui e que o encontre algum dia.

À mim e à Bel, foi muito além do papel de pai. Foi nosso amigo e nosso herói. Como naquelas ondas, você nos deu a mão e nos trouxe até aqui; como daquelas ondas você agora nos dá o empurrão final, e como do fim daquela onda sei que você seguirá gargalhando de alegria e com as mãos para cima em sinal de vitória cada vez que te buscar. Obrigada pai, porque você garantiu a nossa formação e garantiu, sobretudo, que realizássemos nossos sonhos de infância: a Bel queria formar uma família, e você a entregou a essa família, em um dia no qual, entre tantos sorrisos, a sua luz estava particularmente forte. Em seu semblante, diante do olhar dos seus melhores amigos da vida toda e de sua família, plenitude. À mim, que queria ter uma carreira, você fez o possível e o impossível. O possível foi a formação, o apoio, a torcida, o orgulho. O impossível, os detalhes, como este que jamais esquecerei: quando eu era pequena, te dizia que meu sonho era aparecer na TV. Você então pegou uma foto minha 3x4 e colou em uma televisãosinha de brinquedo, do tamanho da foto. Cheguei em casa e acreditei piamente que havia aparecido na TV.

Um otimismo que sempre caminhou com você e que garantiu também que você vivesse tão pleno todos esses anos.

Que me enche de orgulho e paz, que deixa essa tristeza mais leve, embora imensa, porque todos ficamos com a sensação de quero mais. Eu queria, claro, muitos mais anos, queria que você conhecesse aqui seus netos, mas sei que vale mais o amor que o tempo, e sei que você conhecerá seus netos de outra maneira, e talvez até mesmo antes de nós. E sei ainda que você experimentou a beleza de ser avô através dos filhos dos seus sobrinhos, com os quais você também praticou a paternidade antes mesmo de ter a sua primeira filha. Acredito inclusive que parte de sua missão era distribuir amor na forma de tio e tio-avô, e um sinal para mim tão claro disso é, além da gratidão nos olhares desses sobrinhos, duas delas terem te escolhido espontaneamente como padrinho de adoção, não por acaso a sua primeira sobrinha, de 41 anos, e a sua última sobrinha-neta, de apenas quatro.

Todos em busca, e agora comprometidos, com seus ensinamentos: comer bem, praticar esportes, encontrar a felicidade nas coisas simples, viajar, cuidar do lar, compartilhar e dar tanto de si à família e aos amigos, ser digno e fiel a nossos companheiros de vida.

Pai, eu também me comprometo a passar adiante esses ensinamentos, até porque são poucas as coisas na vida que não aprendi com você. Há pouco de mim que não é você, e como seu reflexo no mundo prometo dar continuidade à sua proposta de vida. Prometo fechar os olhos para ver melhor e também engraxar minhas botas e limpar meus óculos, não equilibrar copos, celulares e computadores na esquina da mesa, sentar direito diante da mesa de trabalho, comer espinafre e azeite, desfazer a mala ao chegar da viagem. Prometo seguir viajando e prometo você seguirá sendo meu maior companheiro de viagem, e que agora, em vez de whatsapp, prometo que conversaremos em pensamento e em sonhos.

E eis portanto minha promessa: prometo que, sendo Luisa, seguirei sendo também David.

O David que segue presente nas nossas vidas, na nossa memória, nas nossas casas, na rua Visconde da Graça, no clube Piraquê, na ARI, no mar.

O David Moskovics brasileiro, judeu, carioca. Filho de Freida, romena, e Carlos, húngaro.

O David engenheiro civil, 1º tenente, marido, pai, irmão, tio, padrinho, cunhado, primo, genro.

O David vascaíno, piadista, chef de cozinha, tenista, corredor, campeão de natação e vôlei, motocilista e piloto de barco.

O David navegador, mergulhador, o pescador. Amante do mar, onde, fechando os olhos, te verei para sempre pegando jacaré nas ondas com um dos braços esticados, explorando as tocas de peixes com tranquilidade e fôlego;

onde a cada mergulho te verei gargalhando e com as mãos para cima em sinal de vitória.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Beijo de carnaval


Acabou o carnaval assim de repente. Parou a música, evacuou-se a multidão, o bloco passou. Não tem mais nada. Só tem você, e eu, e esse beijo, que congela tudo, que assassina as convenções de tempo e espaço em que insistimos em viver, esse beijo que ousa interromper o carnaval, mesmo que ainda seja seu início. Porque com ele, o beijo, estou aqui e já não estou. Estou aqui, no bloco de rua onde nosso olhar se cruzou, um clichê que só o carnaval justifica. E também com ele, o beijo, já não estou aqui, estou no metrô, e em uma praça, e em uma varanda, e depois de volta ao bloco, desperta por fragmentos da música que de repente escuto, pela sua mão que de repente sinto no meu rosto, pelo cutucão da moça bêbada, que já não lembro se era lá ou no metrô. E de novo na varanda, escutando agora não fragmentos mas toda uma música, sua música, que você dedilha suave nas cordas do violão. O seu dedilhar me desperta dessa confusão temporal e agora te vejo, embora não te veja realmente, afinal ainda estamos mascarados, afinal ainda é carnaval. É? Já não sei, já não penso, só te vejo e te ouço, embora mais do que ver e ouvir, sinto. Porque o que acontece neste momento aqui fora acontece muito mais aqui dentro, neste momento e em qualquer outro, que eu confusa vivo e revivo, num passado e presente cujas barreiras seu beijo derrubou. Logo eu que tenho medo de barreiras derrubadas, do que não é planejado, embora agradeça não ter mais barreiras nem planos, embora agora eu tenha medo do que vai acontecer quando sairmos desta cama, deste vácuo de tempo e espaço. Não quero sentir saudades, mas já tenho saudades até dos carinhos que a sua mão ainda ensaia sobre as minhas costas, do resto de beijos que você ainda nem sequer me deu, mas que sei, num saber sossegado, irracional, que você me dará. E que me provoca nostalgia antes mesmo de esse beijo completar um dia, em tempo curto mas que parece uma eternidade, porque já não tenho lembrança de como vivi sem ele antes disso. Pior, como vou viver sem ele depois. Será que vai dar para respirar sem o seu beijo? Suspeito que não, porque agora me falta o ar justamente quando estou fora dele.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Ouviu?

Te contei um sonho
Quando ninguém escutava.
Ninguém escutava e só você
Ouviu meu sonho.
Ouviu?
Te contei um sonho
Para ecoar meu silêncio
E silenciar o grito dentro de mim.
Fui mar adentro nesse sonho
Te encontrei no mar
Mergulhamos fundo
Eu e você.
Olhamos para cima
E na superfície todos gritavam;
Aqui embaixo, dormiam.
Acordados, só eu e você,
Ouvindo os ruídos ácidos
Dos que dormindo gritavam.
Em silêncio, conversamos
Te contei, em sonho, do meu sonho
E, nele, você ouviu
Quando ninguém escutava
Em silêncio, despertei
E sorri que você ouviu meu sonho.
Ouviu?

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Pensamento

Fiquei pensando quem era você, quando você entrou no metrô sem fazer barulho mas mesmo assim chamou minha atenção. Você me chamou enquanto eu pensava (em que mesmo?) com a mão sustentando a cabeça, que foi aos poucos se endireitando para te ver.
(eu vi).
E fiquei pensando como raios parei de pensar para aos poucos te escutar e ver: seus cabelos que encostam nos ombros, sua calça jeans com cinto, seu tênis preto, e a bolsa de violão que você carregava.
(você mesmo já disse que eu vejo aos poucos)
Fiquei pensando de onde você deveria ser enquanto você guardava o livro, se ajoelhava e tirava o violão da bolsa com calma, e com calma testava as cordas dele antes de levantar e começar a cantar.
(para todos, para mim)
Fiquei pensando como você adivinhou que eu pensava de onde você deveria ser quando você me respondeu com seu castelhano marcado que era espanhol. Claro, espanhol, estamos na Espanha. E foi da Espanha a música suave (qual era mesmo?) que você cantou em seu espanhol marcado.
(marcando a todos, a mim)
Fiquei aqui pensando por que você entrou no metrô naquela hora em que eu pensava,
Fiquei pensando por que você se levantou e cantou acompanhado de seu violão,
Fiquei pensando por que você sorriu tímido mas incisivo
(e se você sorria assim tímido mas incisivo para todos, ou só para mim)
Fiquei pensando o que seria de nós, até que você com sua música já não me deixou pensar.
(Você com sua música me convidou a sentir).

domingo, 14 de agosto de 2011

Como nossos pais

Ele te obriga a comer todo o espinafre e olha feio quando você cospe a granola
(mas são esses dois os primeiros itens que você compra no supermercado quando vai morar sozinha)
Ele te proíbe de ir numa festa que você nunca lembraria mas dá milhas do cartão para uma viagem que você jamais esquecerá
(Aliás, ele hoje viaja com você a cada viagem sua, e te ensina que de olhos fechados se vê melhor)
Ele insiste para você desfazer a mala quando chega de viagem, e não uma semana depois dela, como você faz
(e hoje você a esvazia no mesmo minuto que entra em casa)
Ele te diz sorrindo que "se você está bem, o walkman é bobagem, compramos outro" quando você chega em casa chorando de um assalto no ônibus
(e hoje você anseia pelo mesmo sorriso dele ao contar que comprou um ipad)
Ele dá gargalhadas quando te vê dando loopings na montanha russa, descendo uma ladeira de patins e deslizando sobre uma onda
(e hoje nenhuma dessas coisas tem graça se ele não estiver lá)
Ele diz tranquilo que "vai sim que eu já vou atrás" quando você chora de medo de ir morar longe
(mesmo que hoje ele esteja de braços abertos quando você quiser voltar)
Ele te acompanha em todas as provas esportivas e vibra com igual intensidade pelo primeiro lugar na prova de biatlhon ou o segundo na de natação
(mesmo que só tivessem duas competidoras)
Ele te busca na boate depois das 3h e te leva de moto para a escola antes das 7h, e ainda te deixa abrir os braços enquanto acelera na pista vazia
(embora hoje você o agarre forte quando vai na carona dele)
Ele abandona a partida de tênis quando te vê chorando por uma unha quebrada no jogo de futebol
(e hoje você sabe que ele abandonaria muito mais por muito menos)
Ele torcia o nariz cada vez quando você escolhia festejar seu aniversário no McDonald´s
(para o qual é você quem hoje vira a cara em qualquer dia do ano)
Ele insistia em vão para você levar com a comida do trabalho um vidrinho de azeite
(sem o qual você hoje não come nenhuma refeição)
Ele te puxa da cama para viajar de manhãzinha, mas você briga para levantar depois das 10h
(e hoje você ama ver o nascer do sol do ônibus)
Ele te fala um dia qualquer que se as pessoas se dessem conta do prazer que há em um tomar um bom banho ou calçar um sapato confortável nunca precisariam usar drogas
(e você lembra disso a cada vez que liga o chuveiro)
Ele nem se importa, aliás, que você finja não escutar o que ele diz, porque sabe que está te ensinando a longo prazo
(e não é que você topa todo dia com as frases que ele te disse há 20 anos passeando pela sua mente?)
Ele e você brigam, você não concorda com o que ele diz, ele insiste e diz de novo, você discorda novamente

E até que um dia é ele, veja só, quem você enxerga no espelho quando se olha a si mesma.
(então você percebe que vê o mundo através dele)

E entende, e agradece, que no fim das contas somos como nossos pais.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Despedida

A cada despedida, sempre vai embora um pouco de quem fica. E sempre, a cada despedida, fica um pouco de quem parte.
Seja qual for a partida.
Aqui em Madri, o fluxo de gente chegando e partindo é tanto que sair para uma despedida é tão habitual como ir a um aniversário. Ou mais até, dependendo da época e considerando a crise econômica da Espanha que expulsa cada vez mais os imigrantes.
Mesmo assim, quando se mora longe de casa a sensação é que qualquer relação que estabelecemos é bem mais efêmera, não pela profundidade – às vezes bem maior que as de toda a vida – mas por se criarem e se desfazerem na dinâmica desse vai e vem de pessoas que, casualmente ou não, se encontraram numa determinada cidade, num determinado período de tempo.
São nesses momentos, porém, que, uma nas outras, deixam suas marcas, grandes – como um amor à distância, coisa para valentes – ou pequeninas, como um tapetinho deixado de herança por uma amiga que foi embora de Madri há algumas semanas e que se encaixou perfeitamente no meu quarto. E para o qual, olhando esta manhã, eu voltei a pensar neste tema, especialmente ao lembrar que havia sonhado com o meu avô, por quem nutro outro tipo de saudade, o eterno.
Outro dia, no aeroporto, uma portuguesa sentada ao meu lado dizia ao telefone que também tinha saudade, essa palavra bonita que só se ouve no nosso idioma - salvo em adaptações como a de um amigo paraguaio, que me escreve "eu teñio saudadí" - mas se sente em todos.
Porque ninguém está imune a ter o coração apertado quando move a mão para dar um “tchau”, fisicamente um movimento simples, mas emocionalmente talvez um dos mais complexos.
Porque cada “tchau” está carregado de histórias, sentimentos, sorrisos, lágrimas, palavras ditas e não ditas – essas que apertam ainda mais forte.
Cada “tchau” tem impresso em si a marca de quem fica em quem vai, e a dos que partem em quem deixam. E assim, um no outro, se fazem eternos.

domingo, 10 de abril de 2011

Roda mundo

Meus olhos toparam dispretensiosamente com a etiqueta "hecho en China" da cortina do chuveiro enquanto eu tomava banho hoje no Holyday Inn de Atenas.
Ou seria de Lisboa?
Não, o Holyday Inn de Lisboa foi onde a arrumadeira, romena como minha vó, me ensinou a fazer a cama outro dia. Que dia? já nem lembro. Mas lembro que a cortina "hecha en China", apesar de escrita em espanhol, era mesmo do Holyday Inn - uma cadeia de hoteis dos Estados Unidos - de Atenas, na Grécia, onde estava para acompanhar a visita da presidente brasileira, que foi fazer um pit stop na sua viagem para a China, que é de onde vem a cortina do banheiro do hotel da rede americana no qual eu, brasileira como a presidente (que aliás veio do leste europeu, como meus avós), estava hospedada, em Atenas, na Grécia.
Eu e um árabe, que passava os dias perambulando pelo hotel de turbante. Um bem parecido ao que usava o motorista do ônibus que me leva à sede da ONU em Genebra.
Não, o motorista era do double decker de Londres, onde de repente estou, ao lado do motorista de turbante, da menina com uma das categorias do véu islâmico, das inglesas que desenharam a bandeira de seu país no rosto, marcando na cara sua origem, assim como a menina do véu islâmico do Paquistão.
Ou seria da India?
Pisco o olho e de repente estou no avião de volta a Madri. Ou seria a Londres de novo? Já não lembro, mas sei que sentei ao lado de um menino da China, como a cortina do hotel de Lisboa e para onde a presidente, brasileira como eu, iria após um pit stop na Grécia. Ou seria Lisboa?
Madri. Agora estou jantando em Madri com amigos brasileiros que me contam a história de suas famílias. Um era polonês, fugiu do Holocausto para a Inglaterra e casou-se com uma italiana, com quem para o Brasil, onde nasceu minha amiga que, num movimento oposto, ganhou passaporte da Italia e foi morar em Madri. Outro, depois de se esconder dos nazistas em um porão em Budapeste, fugiu para o Rio de Janeiro, onde combinou de encontrar com a mulher, que, anos depois, baixou ali com os filhos e conseguiu reencontrar o marido por um anúncio no jornal local.
Jornal local. Levei um de cada lugar. Da Grécia (ou seria Londres?), de Londres (ou seria Lisboa ?). De Lisboa (ou seria Grécia?). Disso não lembro, só de que todos eram locais, embora falassem do mundo, embora me mostrassem, os jornais, a cortina chinesa do banheiro grego, a arrumadeira romena, a presidente brasileira, o hotel da rede americana, o avô polonês da minha amiga paulista, o avião irlandês com o passageiro da China, e do Brasil, e de sabe-se lá de onde mais, o quão falido é o conceito de local, o quão estáticas são nossas visões a partir da nossa origem, e não de nosso destino - o mundo -, o quão falsas são as fronteiras nacionais, e o quão verdadeiro é que "somos todos filhos de Deus.
Só não falamos a mesma língua".

terça-feira, 15 de março de 2011

A cidade que se quer

Há dez dias deixei uma temporada de mais de três meses no Rio, a cidade onde eu nasci, cresci e tenho penetrada nas minhas entranhas, e voltei a Madri, a cidade que escolhi para viver há dois anos e que, sorrateira, me faz parte dela, e ela parte de mim a cada nova estadia.
Sempre que penso nisso me vem à cabeça a cena do filme "Avatar" em que o protagonista confessa ao seu videoblog já nem saber qual dos seus dois lados - o humano e o avatar - é o real.
O Rio é minha cidade de origem. Madri é minha cidade de destino - pelo menos por agora -, um destino que escolhi porque...bem, não há um porquê. Há vários.
Um deles é a amizade que Madri - embora nem sempre os madrilenhos! - faz de graça com quem for, da onde for, da cor, cara, opção sexual e dinheiro que tiver. É também a liberdade de caminhar pelas ruas a qualquer hora da madrugada, permitida pela relativa segurança de uma cidade europeia combinada ao movimento noturno de uma cidade que também tem sangue latino. Queria poder descrever a sensação que tive no dia que voltei a Madri ao cruzar a Plaza Mayor às 4h da madrugada, rodeada pelo conjunto de prédios seculares, pintados com a alma de tantas histórias, reconstruídas diariamente.
Outro motivo é a personalidade de Madri, que acho parecida com a minha. É, na minha visão, uma cidade cuja força, beleza e intensidade não se revelam imediatamente e nem tampouco para qualquer um, como Paris, Praga e, claro, o Rio, que esfregam suas qualidades na cara de quem acaba de chegar e que, óbvia e naturalmente, vão atrair a maioria dos viajantes.
Madri não. Madri exige que se enxergue sua beleza perdendo-se por ruelas e topando com prédios, esculturas e paisagens escondidas de tirar o fôlego. Madri exige que se sinta sua força numa caminhada notívaga. Madri exige que se descubra a intensidade com o leve passar dos dias.
Ao mesmo tempo, porém, é uma cidade comportada - para o ponto de vista de uma carioca, frise-se. Cada parte do espaço público cumpre precisamente sua função -, nem mais nem menos que ela -, do transporte aos parques, dos cafés peculiares aos grandes restaurantes, dos (poucos) shoppings aos mercadinhos a céu aberto. Nada escapa de ser exatamente o que se é.
Não nego que esta seja uma visão um tanto poética do que é Madri. É que, ao mesmo tempo que já voltei à rotina de trabalho, mudança e problemas burocráticos, ainda enxergo quase só poesia na cidade, no violino que tocam pelos corredores do metrô, nas árvores indecisas entre ainda ser inverno ou já primavera, nos idiomas que se escuta diariamente - hoje, só no trecho entre a academia e minha casa, teve árabe, francês, chinês e um idioma africano -, no ponto do ônibus noturno que serenamente me leva à casa, no frio que me faz sentir tão viva, nos passos que dou e através dos quais sinto que a cidade já é um pouco minha, e eu um pouco dela.
Porque cada um É da cidade que QUER.
Eu sou do Rio.
Eu quero Madri.

(p.s.: a foto acima é de um cartãozinho que ganhei enquanto caminhava pensando sobre este post)

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Aurora

A cidade já clareou mas ainda descansa silenciosa, às 5h40 desta segunda-feira. É um silêncio atípico, de um Rio de Janeiro que é caos por essência. O fim do horário de verão permite essa combinação rara nesta época do ano por aqui: já é dia e ainda é silêncio. Ainda dormem o ruído da obra, das máquinas de lavar roupa, dos vendedores da praia, do samba em qualquer esquina neste pré-carnaval.
As calçadas ainda não fervem, embora o sol se reflita nas árvores do Jardim Botânico. Daqui, imagino a efervescência que certamente já despertou quase todas as favelas da cidade. Mas aqui ainda é silêncio.
É um silêncio falso, eu sei. Melhor: uma pausa de algumas horas do fervilhante cotidiano carioca. Mas é um silêncio que está ali, que também existe, que me faz até sentir saudades do inverno europeu, dos dias frios em cafés onde quase não se fala, só se observa, se aprecia, se reflete, se cala.
Aos poucos, o caos vai retomando seu espaço. O menininho aqui do lado sai pra escola brigando com a mãe, a ignição de um carro é ligada, seguida de outra. O jornal aparece na porta, a Dida chega e já abre a tábua de passar roupas. A minha irmã sai para correr. Inauguram-se os discursos no Facebook dos meus amigos brasileiros (porque os espanhóis, quatro horas à frente, já estão na ativa), além dos cantos dos pássaros e da cigarra nas árvores.
Volto para a sala e o dia já ferve, embora não seja nem 7h30. Desisto de dormir e vou tomar café, porque, mesmo que eu queira, o caos já não deixa. A obra do lado já não deixa. A aurora já devolveu ao Rio sua condição sine qua non, e às 7h30 a pulsação da cidade ferve dentro de mim.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Parto?

- Boa tarde, queria marcar um parto.
(silêncio)
- Dia 20, às 8h, por favor.
(silêncio)
- Hmm ok. Às 10h então.
(silêncio)
- Sim, doutora XXXXXX.
(silêncio)
- Feto único.
(silêncio)
- Paciente XXXXXX. Nascida em 10/07/1978. Primeira vez.
(silêncio)
- Plano Unimed Nacional Platinum Plus.
- Obrigada.

(silêncio)